Parecer elaborado por Afonso de Dornellas e
aprovado em reunião de 7 de Abril de 1922 da Secção de Heráldica da
Associação dos Arqueólogos Portugueses.
A Câmara Municipal de Sesimbra, desejando mandar
fazer um estandarte com o respectivo brasão a cores, dirigiu á
Associação dos Arqueólogos Portugueses, o seguinte ofício:
- Câmara Municipal de Sesimbra. Serviço da
República. -
Exmo. Sr. Presidente da Associação dos
Arqueólogos Portugueses. -
Lisboa. - N.º 81. Desejando esta Comissão
Executiva mandar fazer um estandarte para esta Câmara, pelo facto de há
mais de cinquenta anos não existir, nem vestígios certos pelos quais
possa ser reconstruído, venho pedir a V. Ex.ª a subida fineza de
elucidar se o escudo que encima este ofício é o verdadeiro e primitivo
ou se foi adoptado de alguma casa titular que existisse neste Concelho.
Em qualquer das hipóteses rogava o favor de indicar as cores que lhe
pertenciam, satisfazendo esta Câmara toda a despesa com um fac-simile a
cores. Agradecendo a V. Ex.ª a solicitada fineza, vos desejo Saúde e
Fraternidade. Câmara Municipal de Sesimbra, 19 de Maio de 1921. - O
Presidente da Comissão Executiva, (a) Abel Gomes Pólvora.
Este ofício é escrito cm papel timbrado
incluindo um castelo arrematado por uma águia de asas abertas que poisa
na torre central e abaixo do castelo, correndo, um coelho.
Não sei o que significa, não conheço este
conjunto como constituindo um brasão de qualquer família portuguesa e
Sesimbra não consta que tivesse brasão em qualquer época.
Na reunião da secção de Heráldica da Associação
dos Arqueólogos Portugueses de 15 de Julho de 1921, foi tratado o
assunto acabando por ser eu incumbido de o estudar formulando um
parecer.
Constou pelos jornais que tinha sido o assunto
ventilado o que motivou segundo ofício da referida Câmara, nos seguintes
termos:
- Câmara Municipal de Sesimbra. - N.º 281. -
Exmo. Sr. Presidente da Assolação dos Arqueólogos Portugueses. Largo do
Carmo. Lisboa. - Tendo esta Comissão conhecimento que a Associação da
vossa digna Presidência já se ocupou, em duas das suas sessões, do
brasão de Sesimbra, solicito de V. Ex.ª o favor de informar se já chegou
a resultados positivos sobre o assunto e no caso negativo, quais as
cores do brasão actualmente adoptado, satisfazendo esta Câmara toda a
despesa com um fac-símile a cores. Agradecendo as informações pedidas,
vos desejo Saúde e Fraternidade. – Câmara Municipal de Sesimbra. 1 de
Novembro de 1921. - O Presidente da Comissão Executiva, (a) Abel Gomes
Pólvora.
Tem levado este estudo bastante tempo a
concluir, por ser meu desejo o errar o menos possível, tendo procurado
por todas as formas e feitios o descobrir a origem ou as razões da
existência do brasão acima referido e que se não sabe como é adoptado
pela Câmara Municipal de Sesimbra.
É de facto um problema bastante complicado e de
uma solução de grave responsabilidade.
Esgotados todos os meios possíveis e imagináveis
para conseguir decifrar este enigma, na reunião da Secção de heráldica
efectuada em 10 de Fevereiro de 1922, expus o embaraço em que me
encontrava simplesmente por aparecer este desenho de castelo, da águia e
do coelho, pois que se nada disto aparecesse era facílimo organizar um
brasão para Sesimbra em face da sua interessante história.
Propus, pois, que se solicitasse da referida
Câmara algumas explicações sobre o caso. Assim se fez o que despertou a
seguinte elucidativa resposta:
Câmara Municipal de Sesimbra. - Gabinete do
Chefe da Secretaria, - n.º 96. Exmo. Sr. Presidente da Direcção dos
Arqueólogos Portugueses. Edifício Histórico do Carmo Lisboa. Em resposta
ao ofício de V. Ex.ª de 11 de Fevereiro último, cumpre-me informar:
a) No edifício dos Paços do Concelho, cuja data
de constatação não é possível precisar, existe embutido na parede do
lado nascente e defronte do Antigo Pelourinho o brasão que esta Câmara
adoptou;
b) O edifício era pertença de uma antiga casa
fidalga, talvez extinta;
c) O motivo que levou as Câmaras transactas -
haverá uns 30 anos - a adoptarem este brasão foi o não possuírem outro e
o Edifício dos Paços do Concelho, em posse da Câmara há mais de 70 anos,
ter o brasão que encima este papel. Informo mais, que no Castelo não
existe escudo algum nem indícios da sua existência em qualquer parte das
muralhas, existindo unicamente sob a porta principal da Igreja o
distintivo da Ordem de Santiago, a que a mesma pertencia. Em vista do
exposto, esta Câmara continuará a usar o actual brasão carecendo
unicamente de saber as cores do mesmo, para mandar fazer um estandarte.
Agradecendo a V. Ex.ª e á Associação da vossa mui digna Presidência,
todos os esclarecimentos e estudos sobre o assunto, vos desejo Saúde e
Fraternidade. Câmara Municipal de Sesimbra. 7 de Março de 1922. O
Presidente da Comissão Executiva, (a) Abel Gomes Pólvora.
Não dá este ofício bases concretas para a
definição, mas enfim já diz alguma coisa.
Poderia a Câmara de Sesimbra tentar investigar
um pouco mais, podia mesmo enviar-nos uma fotografia do brasão que
existe no edifício da Câmara e que consta ter sido pertença de uma
antiga família fidalga, mas não é necessário. Com estes elementos já
podemos reforçar o nosso modo de ver sobre o assunto.
O Castelo, a Águia e o Coelho que compõem um
conjunto que timbra o papel de ofício da mesma Câmara, não aparece
dentro de qualquer cercadura, portanto não tem aspecto de brasão, sendo
mais natural que esteja assim representado um escudo no referido
edifício.
É conhecidíssimo em dezenas de casos ainda hoje
expostos em portões de quintas, portas de palácios, sepulturas, sinetes,
etc., a forma como em todas as épocas tem sido tratada a heráldica em
Portugal. É um pavor.
A conclusão é a principal base para se organizar
um brasão. Desde a pessoa considerada conhecedora que informa, como a
que ouve, a que reproduz pelo desenho e a que grava, todos completam o
perfeito estado de confusão e depois da confusão feita segue rumo com
destino ao infinito e atravessa gerações e gerações a ser reproduzido
com todo o respeito e veneração.
Ora vejamos como o brasão actualmente adoptado
pela Câmara Municipal de Sesimbra, constitui uma charada que vou tentar
decifrar.
Para a decifração, baseei-me no último ofício
transcrito acima.
Diz o ofício resumindo:
Alínea a) - No Edifício dos Paços do Concelho
......existe embutido............ o brasão que esta Câmara
adoptou.
Alínea b) - O Edifício era pertença de uma
antiga casa fidalga, talvez extinta.
Alínea c) - O motivo que levou as Câmaras
transactas - haverá uns 30 anos - a adoptarem este brasão, foi o não
possuírem outro e o Edifício dos Paços do Concelho, em posse da Câmara
há mais de 70 anos, ter o brasão que encima este papel (ofício).
Ora parece que está mais que provado que de
facto este brasão era de uma família, portanto como no início deste
parecer digo, fiz muito bem em procurar pelas famílias portuguesas se
haveria alguma coisa pelo menos parecida. Não encontrei antes da
recepção deste último ofício, mas encontrei depois. Vejamos como.
Diz Pinho Leal a páginas 263 do 2º volume do seu
«Portugal Antigo e Moderno» no artigo referente a Sesimbra, o seguinte:
- João Martins de Deus, era um cavaleiro asturiano, que se veio
estabelecer nesta vila e é progenitor dos Martins de Deus, daqui e de
Setúbal.
Suas armas são - escudo dividido em pala, na
primeira de azul, um castello de ouro, com um corvo negro á porta; na
segunda, d’ouro, aguia azul, rompente. Elmo d’aço, e por timbre 5
plumas, duas d’ouro e 3 azues. Outros da mesma família teem as mesmas
armas, mas por timbre um castello d'ouro, que é o das armas.
É da mesma opinião o Visconde de Sanches de
Baena no seu Archivo Heraldico-Genealogico, dizendo
que assim está igualmente no Livro dos Reis
d'Armas (Torre do Tombo).
Ora como João Martins de Deus era proveniente
das Asturias, fui consultar o D. Francisco Piferrer, no seu «Nobiliario
de los Reynos y Señorios de España» Madrid 1857 e, no Tomo III, páginas
190, sobre n.º 1375 encontro o seguinte: - Martinez. Una de las
numerosas familias que se distinguem con el patronimico Martinez, muy
antiga y estendida en Asturias, Leon y Galicia, enlazada con la de
Buergo, tiene por armas: Escudo cortado; el 1º de azur y un castillo de
plata ; el 2º de oro y un cuervo passante; bordadura de plata y ocho
estrellas de azur. -
Por último vamos ver o que nos diz o grande
heraldista Major Guilherme Luiz dos Santos Ferreira no seu Armorial
Português. Lisboa 1920, a páginas 207 e sob n.º 938.
- Martins de Deus - Partido: 1º de Vermelho, com
uma torre de oiro; 2º de oiro, com uma águia de azul, erguendo o vôo.
Timbre. Três plumas de azul e duas de oiro, reunidas em ponta.
Portanto temos aqui três autoridades a falar:
Visconde de Sanches e Baena, D. Francisco Piferrer e Guilherme Luiz dos
Santos Ferreira.
Todos três juntos são os elementos
indispensáveis para a organização do brasão que a Câmara Municipal de
Sesimbra erradamente tem usado pela simples razão de estar embutido na
parede.
Ora valha-nos Deus mais o brasão de João Martins
de Deus!!
Sanches de Baena e Santos Ferreira dizem que
este brasão é partido, portanto dividido perpendicularmente.
Piferrer diz que é cortado, portanto dividido
horizontalmente.
Este último heraldista diz-nos que na parte
superior do escudo está um castelo e na parte inferior um corvo.
O Livro do Rei d'Armas, de onde copiou Sanches
de Baena, fez desaparecer a divisão do cortado e aproximando as duas
peças, o Castelo do Corvo, coloca este á porta daquele.
Este Rei d'Armas já junta este escudo com outro
qualquer que era de ouro com uma águia azul o que é evidentemente uma
ligação de duas famílias e Santos Ferreira, o único dos três que
evidentemente mais estudou o assunto, apresenta como brasão dos Martins
de Deus em Portugal a união em escudo partido, portanto
perpendicularmente, no primeiro o castelo e no segundo a águia.
Podia muito bem suceder, como evidentemente
sucedeu que quem esculpiu o escudo de Sesimbra o considerou cortado em
três partes, ou seja horizontalmente, colocando na primeira a águia, na
segunda o castelo e na terceira o corvo.
Como antigamente as cores não se indicavam nos
escudos esculpidos em pedra, não aparecia a divisão dos campos, portanto
aparece-nos reunida a águia ao castelo e em baixo um coelho ou coisa
parecida que evidentemente não é mais do que o corvo que mal esculpido,
ainda foi pior compreendido pelo recente desenhador que fez o timbre do
papel que usa a Câmara Municipal de Sesimbra.
Não nos resta a menor duvida, portanto que o
edifício onde está instalada a Câmara de Sesimbra era da família Martins
de Deus.
Repudio, portanto, em absoluto a ideia de que a
Câmara Municipal de Sesimbra, use por mais um minuto sequer que seja, o
brasão da família de Martins de Deus cuja origem não é portuguesa.
Vamos portanto pensar no selo da Câmara
Municipal de Sesimbra, naquele que a mesma Câmara deve ostentar no seu
estandarte, naquele que deve ser colocado no frontispício dos paços do
Concelho.
Foi Sesimbra cercada de muralhas, portanto deve
ter no seu escudo um castelo e como é banhada pelo Atlântico, deve esse
castelo ser banhado pelo mar.
Sesimbra foi tomada aos Mouros por D. Afonso
Henriques em 1165, portanto é indispensável que ostente no seu brasão
dois crescentes um sobre cada torre lateral do castelo. Sesimbra é
grande na história de Portugal. Sesimbra foi cabeça da comenda da Ordem
de Santiago, portanto na torre central deve ter a Cruz desta Ordem.
Depois de tomada aos Mouros, foi teatro de
sucessivas guerras que arruinaram as suas muralhas mouriscas, mas D.
Sancho I reconstruiu-a e povoou-a em 1200 dando-lhe foral em Coimbra em
1201 com todos os grandes privilégios, foros e regalias do foral de
Évora.
D. Afonso II confirmou este foral em Santarém em
1218 e D. Manuel I deu-lhe foral novo em Lisboa em 28 de Julho de 1514.
O Concelho de Sesimbra, foi criado em 1323 por
D. Dinis elevando-o de Povoação á categoria de Vila.
Sesimbra foi cabeça da Comenda do Mestrado da
Ordem de Santiago e foram seus comendadores os Duques de Aveiro.
Etc. Sesimbra é um volume de história e o seu
brasão tal como o lembro acima encerra toda a sua vida que nobilita o
país.
Proponho portanto que o brasão de Sesimbra seja
constituído por um escudo:
De vermelho, com um castelo de prata de três
torres, sendo a do meio carregada de uma cruz da Ordem de Santiago e as
dos flancos encimadas, cada uma, por um crescente de ouro; o castelo
banhado por um mar de prata, aguado de verde.
Vejamos agora como a Câmara Municipal deve pagar
este estudo.
Nos seus ofícios acima transcritos salienta o
seu desejo de satisfazer a despesa que haja com o desenho do escudo,
pois eu proponho que a Câmara Municipal de Sesimbra arranque com toda a
cautela o escudo que tem nos Paços do Concelho e que no mesmo sitio
coloque o escudo que proponho e que o velho escudo dos Martins de Deus
dê ingresso no Museu Municipal se o houver e caso ainda o não haja, que
seja o inicio do mesmo Museu que é indispensável que o tenha e que com
certeza será fácil vir a ser um belo museu pois que uma terra tão cheia
de historia e de tradição, deve ter numerosos objectos que constituam
essa indispensável manifestação de civilização.
Assim fica pago este serviço.
Agora um conselho que me atrevo a dar à Câmara
Municipal de Sesimbra.
A cor das bandeiras que tem ao centro um brasão,
para boa harmonia, deve ser da cor da peça principal do brasão.
Aqui a peça principal é o castelo, que é de
prata, portanto a bandeira deve ser branca.
Não deve a Câmara Municipal adoptar uma bandeira
com as cores nacionais porque a bandeira nacional por princípio algum
pode ser alterada.
A bandeira bipartida de vermelho e de verde, só
pode conter o escudo nacional e nada mais.
Os Municípios não devem ter nos seus estandartes
qualquer sintoma, salvo por algum caso excepcional, que indique sujeição
ao poder central.
Os Municípios, e esse é o seu princípio, devem
mostrar a sua autonomia, a sua verdadeira independência, e não só por
certos motivos, como muito principalmente pelo respeito que deve haver
pelo pendão que simboliza Portugal, não devem imitar este pendão, nem
disposição das cores, nem do escudo.
Lisboa, 7 de Abril de 1922.
O relator
(a) Affonso de
Dornellas
(Texto adaptado à
grafia actual)
Fonte: DORNELLAS,
Affonso de, «Cezimbra», in Elucidário Nobiliarchico: Revista de
História e de Arte, I Volume, Número IV, Lisboa, Abril 1928, pp.
101-104.