Parecer apresentado
por Affonso de Dornellas à Comissão de Heráldica da Associação dos
Arqueólogos Portugueses e aprovado em sessão do dia 20 de Dezembro de
1935.
Em satisfação da
Circular de 14 de Abril de 1930, expedida pela Direcção Geral da
Administração Política e Civil do Ministério do Interior, a Câmara
Municipal do Funchal, para auxiliar o respectivo estudo das suas armas,
bandeira e selo, encarregou o Sr. Dr. João Cabral do Nascimento,
Director do Arquivo Municipal do Funchal de enviar à Associação dos
Arqueólogos Portugueses, os elementos que se pudessem colher.
Esta deliberação da
mesma Câmara foi tomada em Junho de 1931.
Os elementos
existentes já tinham sido remetidos pelo Sr. Dr. Cabral do Nascimento em
Março e Maio do mesmo ano.
Entre esses veio uma
cópia de uma gravura feita numa bandeja de campainha que figura num
inventário de 1647. Essa gravura representa cinco pães-de-açúcar em
cruz, acompanhados os três do centro por duas canas-de-açúcar. Este
emblema está dentro de uma cercadura ornamentada sem pretensões a
definir um escudo. Na parte superior aparece uma cruz de linhas
irregulares. Os pães-de-açúcar representados nesta bandeja, são em forma
cónica com o extremo agudo voltado para baixo.
Na carta citada de 31
de Março o Sr. Dr. Cabral do Nascimento refere-se a “formas” ou “pães-de-açúcar”.
Eu sei que a
heráldica portuguesa de domínio que marca como correctíssima e bem
ordenada é a da primeira dinastia, depois foi desaparecendo a intuição
artística e simbólica e quando se chegou ao século XVI a heráldica
portuguesa de domínio perdeu-se quase por completo e a que se criou foi
péssima, com raras excepções.
As armas do Funchal
são naturalmente do século XVII, pois só neste século nos aparecem
referências às mesmas, mas, apesar de terem sido criadas numa má época,
não creio que fossem empregar formas de pães-de-açúcar. Nas armas
apareceram sempre elementos de valor histórico ou económico e não umas
formas fossem de que fossem. Lembram com certeza pães-de-açúcar.
Com referência às
duas canas, que aparecem na mesma bandeja existente em 1647, se foram
gravadas com intenção de representar canas-de-açúcar, foi excesso de
referência à indústria do açúcar visto que já lá estavam os pães. Nem
mesmo na má época da ordenação heráldica, se assinalava, dentro das
mesmas armas, o mesmo facto ou a mesma circunstância por duas formas
distintas.
Numas armas gravadas
numa medida de almude datada de 1778, com cinco pães com o vértice do
cone voltado para o pé do escudo, aparecem duas canas acompanhando
exteriormente o escudo, cruzadas em pontão. Num tinteiro de prata de
1798, já os pães aparecem com os seus vértices para o chefe do escudo.
Este escudo também está acompanhado por canas.
No super libros dos
Livros da Porta" de 1886 a 1888, continuam os pães com os vértices para
cima, já sem o escudo ser acompanhado. Os últimos desenhos empregados,
sempre com os vértices para cima, são acompanhados por uma cana e por um
ramo de videira com cachos e parras. Os escudos de 1778 e 1798 referidos
são encimados por coroas reais fechadas e o de 1886 até à actualidade
por uma coroa de duque. Acompanhados na carta referida do Sr. Dr. Cabral
do Nascimento de croquis dos escudos acima citados, diz-se que se mantém
a tradição de que o campo do escudo é verde com cinco pães-de-açúcar de
prata.
Vê-se portanto destes
elementos que as armas mais antigas de que se conhece a existência no
Funchal, são as de 1647.
Vamos agora ver, dois
exemplares do mesmo século que encontrei nas minhas investigações:
No Thesouro da
Nobreza de Portugal, iluminado pelo “Rei d’Armas Índia”, Francisco
Coelho, deitado de 1675 e existente na Torre do Tombo, a folhas 10,
inclui um escudo com os cinco pães com vértice voltado para o chefe e
postos em aspa. O pão central carrega uma planta que mais parece uma
palmeira do que uma cana.
Este Códice tem o
único mérito de ali estarem reunidas as armas que o seu iluminador
conheceu ou tem referência. Não inclui quaisquer outros elementos do
estudo ou critério.
Na Biblioteca Pública
Municipal do Porto, existe o precioso códice 498 denominado Arte da
Armaria e Brazões de Cidades e Vilas de que se não conhece o autor, mas
que é muito considerado pela honestidade das suas informações que junta
à maioria das armas que tem desenhadas, pois chega a copiar as legendas
dos selos municipais a descrever as bandeiras, enfim, vê-se que na
maioria dos casos viu o que descreve.
Este livro deve ter
sido desenhado e escrito muito vagarosamente em meados do século XVII. A
data mais adiantada que ali tenho encontrado é de 1675.
Sobre o Funchal, a
folha 71, apresenta um escudo com três pães-de-açúcar, postos 2, 1,
trancados, quer dizer, sem vértice. Na parte escrita diz: Funchal He
cidade Episcopal E cabeça da Ilha da Madeira que pela copia de açúcar
que dá tem por divisa três pães dele em roquete em campo verde: outros
dizem que cinco em quina.
Nestes dois códices
portanto aparecem mais estas duas modalidades.
Depois destes
exemplos, ou seja, do último quartel do século XVII para cá, o que
aparece são cinco pães-de-açúcar com as bases voltadas para o pé do
escudo sem plantas no campo das armas.
É assim que está já
consagrado, portanto devem os pães-de-açúcar continuar na posição que de
facto devem ter, com a base para o pé do escudo como aliás aparecem
sempre na heráldica.
Álvaro Rodrigues de
Azevedo, quando publicou e anotou as Saudades da Terra pelo Doutor
Gaspar Frutuoso, a páginas 492, referindo-se às armas da cidade do
Funchal, diz que são de prata com cinco formas de açúcar, dispostas em
cruz tendo uma cana de cada lado, informando que, posteriormente uma das
canas foi substituída por uma vide com parras e cachos.
É daqui que
naturalmente vem o erro de se chamarem formas ao que não passa de pães.
A Madeira foi ocupada
pelos portugueses em 1420 e, em 1425, o Infante D. Henrique mandou vir
canas-de-açúcar da Sicília, mandando proceder à sua plantação na mesma
Ilha, desenvolvendo-se ali por forma que durante mais de dois séculos
representou uma tal importância, que enriqueceu os donos dos engenhos e
o Estado, sendo considerado o melhor açúcar do mundo.
Foi da Madeira que a
cana-de-açúcar veio para a Península e depois para o Brasil e em seguida
para toda a América e para as nossas colónias da África ocidental.
Na obra acima citada,
diz-se que as formas cónicas para cristalizar e purificar o açúcar foram
inventadas pelos árabes.
No contracto feito
entre o Infante D. Henrique e Diogo de Teive, para fabricação do açúcar
na Ilha da Madeira, entre outras condições, diz-se: “Com condiçom que
o meu almoxarife receba delle o meu terço do dito açúcar que me há de
dar asy ho das formas como da panella”.
Este documento, que é
o mais antigo que conheço que estabeleça uma patente de introdução da
nova indústria, é datado de 5 de Dezembro de 1452.
O Infante D.
Fernando, sucessor do Infante D. Henrique no senhorio da Madeira,
enviando para ali uma carta sobre impostos referentes à exploração do
açúcar, carta datada de 4 de Julho de 1469, recebeu uma resposta em que
se opõem a mais impostos e referindo-se aos pães, chamam-lhes “cabeças
de açúcar”.
Enfim muitos outros
elementos poderia citar sobre o facto de que devem ser pães-de-açúcar
que figuram nas referidas armas da cidade do Funchal e não as cinco
quinas de Portugal como já se tem dito.
Na heráldica de
família os pães-de-açúcar ou de sal figuram sempre com o vértice do pão
voltado para o chefe do escudo e assim devem ser os que figuram nas
armas do Funchal. O que têm sempre é um certo relevo para os tornar mais
artísticos.
Vejamos algumas
variedades:
– As armas da família
Le Guesdoux, do Maine, França, são: de azul com um cortiço de ouro
acompanhado em chefe por dois pães-de-açúcar e em ponta por outro, todos
de prata realçados de negro em espiral;
– As armas da família
Teyts, de Haarlem, Holanda, são: partidas, 1.º de prata com uma cabeça
de negro com diadema de ouro; 2.º contendo, o 1.º de vermelho com três
rosas de ouro e o 2.º de prata com três pães-de-açúcar de negro cintados
de ouro.
– As armas da família
Saltzhoch, Alemanha, são: cortadas, 1.º de ouro com um touro nascente de
negro, movente do corte; 2.º de vermelho com um pão de sal de prata
realçado de negro.
Nestes três exemplos,
os vértices dos pães são sempre voltados para o chefe do escudo.
A riqueza inicial da
Madeira foi a indústria da cana do açúcar nos séculos XV, XVI e parte do
XVII, apesar de também tratarem da vinha, atribuindo-se ao Infante D.
Henrique a sua plantação tendo mandado vir da Grécia, cepas de Malvasia,
enfim dando início à riqueza sucessora do açúcar.
Do século XVI para o
XVII, com a morte da cana sacarina pelo bicho que lhe apareceu e a
inutilizou em grande parte, desenvolveu-se extraordinariamente a vinha,
indo as primeiras remessas para a França na primeira metade do século
XVI, para a corte de Francisco I, tomando ali os vinhos da Madeira tal
fama que todo o mundo o queria e ainda hoje os quer.
Em sessão de 21 de
Novembro de 1931, foi deliberado na secção de Heráldica da Associação
dos Arqueólogos, que ao estudar-se qualquer das armas dos municípios do
arquipélago da Madeira se propusesse que se lhe incluíssem um ou mais
cachos de uvas carregados cada um por uma quina, não só para, dentro da
armaria portuguesa de domínio se distinguirem as armas referentes à
Madeira, que é muito visitada por estrangeiros como pelo facto das
quinas serem mundialmente conhecidas como assinalando o território
português.
Uma das razões da
fama mundial da Madeira é o seu vinho, portanto o cacho de uvas
constitui perfeitamente a simbologia madeirense.
Vejamos portanto como
propomos sejam ordenadas as armas bandeira e selo da cidade do Funchal:
Armas – De verde com
cinco pães-de-açúcar de ouro realçados em espiral e com base de púrpura
postos em cruz, acantonados por quatro cachos de uvas de ouro sustidos e
folhados do mesmo metal, cada cacho carregado por uma quina de azul
carregada de cinco besantes de prata em aspa. Coroa mural de prata de
cinco torres. Listel branco com os dizeres “Cidade do Funchal”, de
negro.
Bandeira – Quarteada
de quatro peças de amarelo e quatro de púrpura. Cordões e borlas de ouro
e de púrpura. Lança e haste douradas.
Selo – Circular,
tendo ao centro as peças das armas sem indicação dos esmaltes. Em volta,
dentro de círculos concêntricos, os dizeres “Câmara Municipal do
Funchal”.
Como as peças das
armas são de ouro e de púrpura, a bandeira é de amarelo que corresponde
ao ouro e de púrpura. Quando destinada a cortejos e cerimónias a
bandeira, tem a área de um metro quadrado, é de seda e bordada. Quando
destinada a arvorar, é de filel, com as dimensões que mais convenham
podendo neste caso dispensar as armas.
O campo das armas é
de verde, esmalte que na heráldica simboliza a água do mar, sendo
portanto a cor própria para o campo das armas da capital de uma ilha.
O verde em heráldica
significa fé e esperança.
O ouro dos
pães-de-açúcar dos cachos e do sustido e folhado dos mesmos, significa
heraldicamente nobreza, fidelidade, constância e poder.
A púrpura da base dos
pães e do realçado em espiral do mesmo, denota heraldicamente opulência
e riqueza.
O azul das quinas
significa zelo, lealdade e caridade e a prata dos besantes, humildade e
riqueza.
Na casa da Câmara,
Sintra, Setembro 1935.
[Affonso
de Dornellas.]
(Texto adaptado à
grafia actual)
Fonte: ABREU, Maria
de Fátima Vieira de, e GASPAR, Urânia Maria Pita, Os Símbolos da
Cidade do Funchal, Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”, 2007, pp.
126-132. |